30 de junho de 2022

29 de junho de 2022

Scouts em Oxford e bedders em Cambridge

    “Em linha com uma longa tradição, tanto Oxford como Cambridge empregavam pessoal cuja tarefa exclusiva era cuidar dos jovens. Em Oxford, estas pessoas eram conhecidas como «scouts»; em Cambridge, eram os «bedders». A distinção era uma questão de convenção – embora as palavras sugerissem uma nuance interessante na forma de supervisão que se exigia que executassem – mas a função era idêntica. Dos bedders, tal como dos scouts, esperava-se que acendessem a lareira (nos tempos em que era este o aquecimento), limpassem os quartos dos jovens cavalheiros, fizessem as camas e mudassem os lençóis, se encarregassem de pequenas compras e, em geral, lhes prestassem todo o tipo de serviços que se presumia que a educação dos jovens cavalheiros os habituara.
    É verdade que na descrição de funções estavam implícitos outros pressupostos. Os estudantes de Oxbridge, julgava-se, eram incapazes de desempenhar estas tarefas subalternas: porque nunca as tinham feito mas também porque as suas aspirações e interesses os punham acima de tais preocupações. Além disso, e talvez acima de tudo, o bedder era responsável por manter debaixo de olho a condição moral de quem tinha a seu cargo (em Oxford, os scouts por vezes eram homens, embora isso fosse raro na década de 60; na minha experiência, os bedders eram quase sempre mulheres).
(...)
    A maioria dos bedders eram senhoras de alguma idade, geralmente de famílias locais que já estavam ao serviço da faculdade ou da universidade há imenso tempo. Estavam, por isso, familiarizadas com a cultura de «serviço» e a interação sutil entre autoridade e humildade intrínseca às relações senhor/servo."

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 105-107.



King's College, Chapel and Clare Hall in the University of Cambridge

Richard Harraden

1797

28 de junho de 2022

Putedo

Nos últimos anos, as minhas várias moradas eram «bases» gratuitas, em pessoas amigas. Vantagens e desvantagens, como tudo na vida. Andava metido em sarilhadas, nunca estava à minha vontade, um turbilhão, por vezes. Neste buraco actual, onde já fiam, fecho a porta e haja o que houver, menos fogo, não me ralo até de manhã. A pensão, ainda em obras, vizinha do Bairro Alto, tem a clientela que se calcula: putedo e respectivos chulos, amantes, engates de ocasião. Isto dá cenas de pancadaria, correrias escadas abaixo. Se estou a ler, interrompo. É mais interessante ouvir. E já me habituei ao ritmo da casa, toda a noite entradas e saídas. Não é comigo, não vejo as caras. A noite passada, a ler, para talvez fazer um breve comentário no Popular, o livro da Isabel do Carmo e da Fernanda Fráguas, Puta de Prisão, com 50 casos de prostitutas narrados da Cadeia de Custóias, eu tinha, no quarto ao lado do meu, uma garota a ser esmifrada por um chuleco, com berraria das 4 às 8 da matina (ele fechou a porta à chave e sacou-lhe a mala), a realidade dos factos tão perto excedia a realidade dos factos do livro.”

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, pp. 213-214.


Rua da Atalaia (Bairro Alto)
Eduardo Portugal
194?

27 de junho de 2022

Ilusões

    O outro estímulo para me separar, é claro, foi a minha experiência no exército nos montes Golã, durante a Guerra dos Seis Dias. Foi ali que, para minha surpresa, descobri que a maioria dos israelitas não eram socialistas agrários modernos transplantados, mas sim judeus jovens, urbanos, preconceituosos, que só eram diferentes dos seus homólogos europeus e americanos na sua autoconfiança machista, gabarola, e por terem uma arma nas mãos. O modo como tratavam os árabes, que haviam derrotado, chocou-me (e pôs um ponto final nas ilusões dos meus anos de kibbutz), e a indiferença com que previam a futura ocupação e domínio de territórios árabes até na altura me deixou aterrado.”

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 102.

Montes Golã
ca. 1970-1990

26 de junho de 2022

Crianças selvagens

     Em Coimbra, comecei uma espécie de reportagem romanceada sobre uma rapariguita aqui do Algarve, internada, muda, com um diagnóstico incerto: autista (ou altista?) e sem cura; ou assim porque metida, desde os quatro aos 14, pela própria mãe, num quarto escuro, com uma clarabóia, nua, com um colchão de arame sem nada em cima do arame, nem ao menos uns jornais. Ali, fechada, tratada por mãe neurótica, que lhe dava o comer como a um cão. Isto não se passou aqui em Lagos, mas perto de Albufeira, na Guia. É o caso do filme do Truffaut e do Kaspar Hauser. Os médicos, esses peritos da doença, interessavam-se e muito mais se o pai (que morreu num acidente precisamente quando começam as desventuras da Isilda) fosse algum latifundiário. E deixasse a viúva com fartos bens. Para azar (de todos: da viúva, da Isilda, dos peritos) a mãe vive a expensas de um filho pedreiro – são quatro irmãos: o primeiro morreu, há dois rapazes normais e a Isilda – e com um pequeno subsídio.”

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, p. 167.


Savage of Aveyron
1807

"A feral child who spent most of his childhood in the wild in the Aveyron before being captured in 1800 and taken to Paris where he was studied by Roch-Ambroise Cucurron Sicard. His education was taken up by Jean Marc Gaspard Itard in 1801, but he never learned how to talk." daqui

25 de junho de 2022

Kibbutz e árabes

   “Adorei. Oito horas de trabalho árduo, que não obrigava a pensar, numa plantação abafada de bananeiras na costa do mar da Galileia, intervalado com canções, caminhadas, longas discussões doutrinais (cuidadosamente encenadas por forma a reduzir o risco de os adolescentes as rejeitarem, ao mesmo tempo que maximizavam a atração dos objetivos partilhados), e a insinuação constante de sexo sem culpa: naquela altura, o kibbutz e a penumbra ideológica que lhe estava associada ainda retinham laivos do ethos inocente de «amor livre» dos cultos radicais de princípios do século XX.
    Na verdade, é claro que eram comunidades provincianas e muito conservadoras, e a sua regidez ideológica camuflava o horizonte limitado de muitos dos seus membros. Mesmo em meados dos anos 60 era já evidente que a economia de Israel não se baseava na pequena agricultura doméstica; e os cuidados que os movimentos kibbutzim de esquerda tinham para não empregar mão-de-obra árabe, mais do que macular as suas credenciais igualitárias isolava-os dos factos inconvenientes da vida no Médio Oriente. Tenho a certeza de que não percebi tudo isto na altura – embora me lembre de me questionar por que razão nunca conheci um único árabe durante as minhas longas estadas no kibbutz, mesmo apesar de viver perto das comunidades árabes mais densamente povoadas do país.”

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 99-100.


Kibbutz Kfar Giladi, Israel
ca. 1979 

24 de junho de 2022

Revolução nenhuma

     Isto era para lhe dizer que (principalmente desde esta história dos CTT – ontem a meter no Rato uma encomenda de papelada para si, vi as caras das raparigas – pareciam viúvas e não só por causa das batas pretas: uns ares acabrunhados, cansados, humilhados, quase envergonhados, inda que as reivindicações deles fossem exageradas) já me sinto na Oposição ao Regime (actual). Ao fim de dois meses, está-me a cheirar que estes Salvadores da Pátria (assim chamaram também aos do 28 de Maio) não fizeram revolução nenhuma, mas uma manobra de salvação própria e de classe (burguesa, capitalista, monopolista, multinacionalista) e de casta (militar). E os 200 capitães, em coro, estão a representar o papel do ingénuo Gomes da Costa e dos convictos honestos (Quintão Meireles e outros) do 28/5. Mas a minha posição é de aguardar. A verdade é que não tive grandes ilusões na primeira hora (a ler o livro do Spínola, semanas antes, vi por ali muita utopia) nem as conservo. (...) Não se pode exigir que quem governa faça tudo a um tempo e eles têm problemas gravíssimos, instantes, e todos os dias novos. O que receio é a convergência de interesses, e um movimento que vá retrogradando para um regime à brasileira (aliás, foi o que esse aviador maluco, Galvão de Melo, cuja cara de nazi chapado logo no dia 25 me chocou pela TV, disse no Brasil).”

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, pp. 145-146.

"O general Galvão de Melo, um dos membros da Junta de Salvação Nacional, acompanhado pelo Dr. Vasco Vieira de Almeida, delegado da Junta para o sector da Banca, à saída da Cova da Moura"
Abel Fonseca
1974

23 de junho de 2022

Kibbutz

A essência do sionismo trabalhista, à época ainda fiel aos seus dogmas de fundação, consistia na promessa de trabalho judaico: a noção de que os jovens judeus da diáspora seriam resgatados das suas vidas estéreis e assimiladas e transportados para colonatos coletivos nos confins da Palestina rural – e ali criariam (e, segundo a ideologia, recriariam) um campesinato judaico, que nem explorava nem era explorado. Tendo a sua origem, em igual medida, nas utopias socialistas do início do século XIX e em mitos russos posteriores de comunidades igualitárias rurais, o sionismo trabalhista estava caracteristicamente fragmentado em cultos sectários antagónicos: havia os que achavam que no kibbutz toda a gente se devia vestir de igual, educar os filhos e comer em conjunto, e usar (mas não possuir) mobília e artigos da casa idênticos, até livros, decidindo coletivamente todo e qualquer aspeto das suas vidas numa reunião semanal obrigatória. Alterações ligeiras ao cerne da doutrina permitiam alguma variedade do estilo de vida e até um mínimo de bens pessoais. E depois havia variadíssimas gradações entre membros do kibbutz, muitas vezes resultado de um conflito pessoal ou familiar que assumia a forma de desacordo fundamentalista.
Mas estávamos todos de acordo quanto ao propósito moral mais lato: trazer judeus de regresso à terra e separá-los do seu abastardamento desenraizado da diáspora.”

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 98-99.


Kibbutz Genesaré, Israel
ca. 1977

22 de junho de 2022

Manuscritos

Carta de Massamá de Luiz Pacheco para Laureano Barros, 16/02/74

    “(...) Eu não sei se o Laureano Barros terá tido por aí conhecimento: chegou agora a Portugal, por via talvez da desvalorização da moeda e de haver muito dinheiro em poucas mãos, que já nem sabem como o hão-de empregar mais rendosamente, o culto pelo Autor, isto é, as coisinhas que os escribas deixam. Viu-se isso há pouco, foi um teste decisivo e para muitos inesperado (forte surpresa! era prática centenária no Lá Fora; ainda li há dias, que o [D. H.] Lawrence obtivera uma quinta solarenga no Novo México em troca do manuscrito de um dos seus romances e fez isso mais vezes), no leilão a favor da Associação de Escritores Portugueses. Convidado a dar, não respondi; insistido, disse que sim e faltei. Aquilo meteu-me raiva, embora por dentro me rejubilasse: é que vi (soube pelos jornais) fazerem-se manuscritos de propósito para o leilão. O que me cheira a jactância. Seremos na verdade assim tão importantes?”

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, p. 137.


Auto da morte: manuscrito/fragmento
Fernando Pessoa
Lisboa
19--

21 de junho de 2022

Comboios

     Que eu tenha vivido os comboios como solidão é, evidentemente, um paradoxo. Eles são, na expressão francesa, transports en commun: concebidos no início do século XIX para facultarem transporte coletivo para pessoas que não podiam ter transporte particular ou, com o passar dos anos, para os mais abastados que podiam ser atraídos por acomodações partilhadas mais luxuosos a preços mais altos. Na prática, ao nomearem e classificarem os diversos níveis de conforto, os comboios inventaram as classes sociais na sua forma moderna: tal como um exemplo dos primeiros tempos pode ilustrar, durante décadas os comboios andavam apinhados e eram desconfortáveis, exceto para os afortunados que pudessem viajar em primeira classe. Mas na minha época a segunda classe era mais do que aceitável para a classe média; e em Inglaterra, essas pessoas isolavam-se. Naqueles dias ditosos antes dos telemóveis, quando era inaceitável ter um rádio a tocar num local público (e a autoridade do revisor bastava para reprimir espíritos rebeldes), o comboio era um local magnífico e silencioso.”

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 74-75.

Locomotives [quartier de la Goutte d'Or, 18e arrondissement]
Agence Rol
1928

20 de junho de 2022

À portuguesa

Carta das Caldas da Rainha de Luiz Pacheco para Laureano Barros, 28/10/66

Como solução desesperada, mas pensada, de emergência, tentando evitar o pior, fui à Sertã dar-me à prisão. Ingenuidade minha e portuguesa: ali deparei com uma barafunda incalculável, o edifício do tribunal em obras, ninguém para me atender (prender). À portuguesa, século XX e daqui para trás. Fugi a rir muito, e com mais medo logo que soube que a cadeia, que supunha ao alto da vila, um autêntico sanatório, era num vale, cheia de água e musgo nas celas. Agora aguardo. De dia, a rir. Às noites, que não durmo, a ter pesadelos.” 

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, p. 72.


Pelourinho da Sertã
Pelourinho: remate piramidal 
2013

19 de junho de 2022

Carros

    Quanto à razão por que nos deveríamos tornar uma família «Citroёn», quando já havia Volkswagens, Peugeots, Renaults, Fiats e afins mais baratos, gosto de pensar que se explicaria por um qualquer motivo étnico subliminar. Os carros alemães, é claro, estavam fora de questão. A reputação dos carros italianos (pelo menos dos que poderíamos comprar) estava na sua fase mais negra: a opinião comum era que os italianos podiam desenhar tudo ─ só não o sabiam construir. A Renault estava desgraçada pela colaboração ativa do seu fundador com os nazis (o que levara a que a firma fosse nacionalizada). O Peugeot era uma marca respeitável, mas, na altura, mais conhecida pelas bicicletas; seja como for, os seus carros eram construídos como tanques e parecia que lhes faltava estilo (o mesmo argumento usado para os Volvos). E, talvez o argumento decisivo, mesmo que nunca dito, o fundador epónimo da dinastia Citroёn fora um judeu.”

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 49.


M. et Mme Citroën
André Citroën e Giorgina Citroën
Agence Rol
1928

18 de junho de 2022

Papéis

    O que é verdade, também, é que de sobra sabia ele que Laureano Barros, na sua condição de bibliófilo, era a pessoa ideal para preservar e estimar aqueles papéis. Tal como muito bem sabia que os coleccionadores – a mecânica sobre que gira esse mundo faz deles uma importante instância de consagração, legitimação e valorização dos escritores, sobretudo da sua posteridade – são responsáveis por alguns dos critérios e princípios de excepcionalidade, singularidade e autenticidade das obras literárias, nomeadamente através da diferenciação entre consumo nobre e consumo vulgar, entre gosto erudito e gosto das massas, entre alta cultura e baixa cultura, entre lógicas da distinção e lógicas populares, entre estratégias de circulação restrita e industrialização dos processos editoriais, entre o autêntico e o artificial, etc.”

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, pp. 33-34.


Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra
Luís Filipe Cândido de Oliveira
198-

17 de junho de 2022

Comer no Reino Unido

     Por isso, cresci com a comida inglesa. Mas não com peixe e batatas fritas, pudim de frutos secos, carne com massa, pudim de yorkshire ou outros acepipes da cozinha caseira britânica. Estes pratos eram desdenhados pela minha mãe por serem pouco saudáveis; ela pode ter crescido rodeada por não-judeus, mas, precisamente por isso, ela e a família não se metiam com ninguém e pouco conheciam do mundo doméstico dos seus vizinhos, a quem viam com medo e desconfiança. De qualquer forma, ela não fazia a menor ideia de como preparar «acepipes ingleses». Os seus encontros ocasionais, através dos amigos do meu pai do Partido Socialista da Grã-Bretanha, com vegetarianos e com vegans tinham-lhe ensinado as virtudes do pão escuro, arroz integral, feijão verde e outros ingredientes «saudáveis» da dieta de um eduardiano de esquerda. Mas ela sabia lá cozinhar arroz integral… Por isso, fazia o mesmo que todos os outros cozinheiros em Inglaterra na altura: cozia tudo até mais não.
    Foi assim que passei a associar a comida inglesa não tanto à ausência de subtileza, mas à ausência de qualquer possível sabor. Comíamos pão escuro Hovis, que, no seu estilo digno, sempre me pareceu ainda mais chato do que as torradas aborrachadas em pão branco que me serviam ao chá em casa dos meus amigos. Comíamos carne cozida, legumes cozidos e, muito esporadicamente, versões fritas do mesmo (para ser justo, a minha mãe até conseguia fritar o peixe com algum estilo ─ nunca consegui perceber se era um atributo inglês ou judaico). O queijo, quando havia, era geralmente holandês ─ por razões que nunca percebi. O chá estava omnipresente. Os meus pais não aprovavam bebidas com gás ─ outro legado infeliz dos seus devaneios políticos ─ e por isso bebíamos sumos de fruta sem gás, ou, em anos posteriores, nescafé. Graças ao meu pai, por vezes aparecia camembert, salada, café a sério e outros mimos. Mas a minha mãe via tudo isto com a mesma desconfiança que tinha relativamente a outras importações do continente, gastronómicas e humanas.”

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 40-41.

"British Food, published by Agnes B./Gallery du Jour, 1995. This is an appetising catalogue published by Agnes B's Galerie du Jour in conjunction with a 1995 exhibition of Martin Parr's flash-saturated images of British cuisine. Close-up, ring flashed images of everyday food from all parts of Britain invites the public to take a look at what they eat. This project kick started Parr’s fascination with food as a way to explore social issues and identity. First Published by Agnes B./Gallery du Jour, 1995. Printed by Les Presses Artistiques, Paris. Softback. w 250 x h 181 mm. Second Edition published in 1998." daqui

16 de junho de 2022

As bibliotecas

As bibliotecas quase nunca são independentes de quem as criou, quase nunca são autónomas do seu organizador. Ele é que retirou cada obra da magnitude incomensurável do mundo dos livros e a integrou num sistema unificado (coleccionar é uma forma de dar sentido a uma pequeníssima parte dessa incessante multiplicidade, é aglutinar numa amostra coerente a copiosa diversidade da vida do cérebro humano), ele é que as reuniu, demorada e cuidadosamente, na unidade de um conceito.”

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, p. 20.


Biblioteca de D. Fernando II (Palácio das Necessidades)
João António Madeira
1886 - 1892

15 de junho de 2022

Açúcar e margarina no Reino Unido

    Depois da guerra, havia escassez de tudo. Para derrotar Hitler, Churchill hipotecara a Grã-Bretanha e arruinara o tesouro. Até 1949, as roupas foram racionadas, a «mobília utilitária», barata e simples, até 1952, e a comida até 1954. As regras foram suspensas por um curto período, para a coroação de Isabel II, em junho de 1953; foi permitido a toda a gente mais 450 gramas de açúcar e 800 gramas de margarina. Mas este exercício de generosidade superrogatória apenas servia para vincar o regime lúgubre da vida quotidiana.”

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 31.

Cartaz da II Guerra Mundial
"Hitler will send no warning - so always carry your gas mask"
Imperial War Museums

14 de junho de 2022

Ser coleccionador de livros

É-se coleccionador de livros por muitas e várias razões. Há de tudo: por amor dos objectos especiais e valiosos; pela lógica económica ou pela sua cotação no mercado; pelo seu valor ostentatório, porque são um meio de auto-afirmação social, um indicador de alta cultura e de refinamento estético; pelo desejo de alcançar o estatuto e o prestígio de ser o maior coleccionador, de possuir aquela peça mais rara de todas; por ocupação ociosa ou para dar um sentido ao (um luxo de ricos); por uma impressão de autenticidade, contra a produção em série da economia moderna do consumo e da grande distribuição, que tende a exacerbar o carácter efémero das obras (hoje o ritmo de publicação é tal, a inflação das novidades é tal, que as livrarias regurgitam livros, os quais morrem cada vez mais depressa, aparecendo e desaparecendo dos escaparates e das estantes a grande velocidade), em detrimento da originalidade e da qualidade estética; por fracasso da vida emocional ou porque se desenvolveu uma fixação relacionada com a ordem, o controlo, a eficiência, a disciplina da arrumação e da organização; porque os livros existem para ser contados e classificado; por necessidade neurótica de controlo da ansiedade, para diminuir a angústia e confinar o caos, perseguir a desordem, procurar uma lógica na multiplicidade de obras que a sociedade coloca à nossa disposição (na opinião de muita gente, como Walter Benjamin, as colecções assentam nessa tensão dialéctica entre a ordem e a desordem); porque precisam das bibliotecas para se exprimirem, pelo efeito pacificador da identificação com os livros, porque é uma forma de se reconhecer a si próprio na biblioteca e se projectar fora de si, por vezes como um ego ideal (a biblioteca), em que a imagem reflectida é mais completa, mais perfeita (tornando-a, simultaneamente, objecto de identificação e um rival); por nostalgia ou contra o esquecimento, para contemplar e recuperar o passado, apropriar-se dele, porque os livros representam épocas diferentes, inserem na memória pontos de referência e remetem para experiências vividas (cada livro, porque suscitou emoções no comprador, conta uma história de aquisição e renova por isso a memória pessoal); por excitação contracultural, quando o interesse do coleccionador se centra nos autores e obras associados à marginalidade ou a uma espécie de inaptidão para a vida prática (mas com uma enorme capacidade para transformar o seu fracasso em capital simbólico); pelo valor estético, o prazer da forma (a cor, o aspecto, etc.), mais do que o conteúdo (estes serão, mais do que leitores, folheados de livros), pela mais trivial materialidade, porque se gosta de tocar nos livros, como se eles apreciassem o contacto humano, e de os cheirar (como o pasteleiro os seus pastéis acabados de sair do forno); pelo vício da posse e de fazer mais aquisições, pela necessidade de renovar o prazer do momento da compra (o mais parecido com a felicidade), pela pulsão de incorporar mais peças à colecção, pelo gozo e a intensidade do imprevisto, do golpe de sorte (com os livros acontece muitas vezes isto: vamos a um sítio onde julgamos que podemos encontrar alguma obra rara e não encontramos nada, mas da vez seguinte, sem estarmos à espera, vemo-lo numa estante ou numa pilha mesmo à nossa frente); ou por tudo isso (e mais algumas coisas que não referi, porque seria abusivo estender muito mais a lista) ao mesmo tempo.”

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, pp. 18-20.


Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra
Luís Filipe Cândido de Oliveira
198-

13 de junho de 2022

Esclerose lateral amiotrópica

     Sofro de uma doença motora neurológica, no meu caso, uma variante de esclerose lateral amiotrópica (ELA): a doença de Lou Gehrig. As doenças motoras neurológicas não são raras: a doença de Parkinson, a esclerose múltipla e uma série de outras doenças menores, todas se inserem nesta designação. O que é característico da ELA ─ a menos comum desta família de doenças neuromusculares ─ é que, primeiro, não há perda de sensação (uma bênção dúbia) e, segundo, não há dor. Ao contrário de quase todas as outras doenças mais graves ou mortais, ficamos livres para contemplar à vontade, e com um desconforto mínimo, a progressão catastrófica da nossa própria deterioração.
    Com efeito, a ELA constitui uma prisão progressiva sem fala. Primeiro, perde-se o uso de um ou dois dedos; depois, um membro; depois, e quase inevitavelmente, os quatro. Os músculos do tronco definham quase ao ponto do torpor, um problema concreto do ponto de vista digestivo mas que também põe a vida em risco, pois respirar torna-se a princípio difícil e, com o tempo, impossível sem ajuda externa, na forma de um aparelho com bomba de ar e tubo. Nas variantes mais extremas da doença, a par da disfunção dos neurónios motores superiores (o resto do corpo é conduzido pelos chamados neurónios motores inferiores), torna-se impossível engolir, falar e até controlar o maxilar e a cabeça. Não sofro (ainda) deste aspeto da doença, caso contrário não conseguiria ditar este texto.” 

Judt, Tony, O Chalet da Memória, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 23-24.

"Serpent mask of Tlaloc, in the form of two intertwined and looped serpents worked in contrasting colours of turquoise mosaic."
1400-1521
Mexico