“Em
Coimbra, comecei uma espécie de reportagem romanceada sobre uma
rapariguita aqui do Algarve, internada, muda, com um diagnóstico
incerto: autista (ou altista?) e sem cura; ou assim porque metida,
desde os quatro aos 14, pela própria mãe, num quarto escuro, com
uma clarabóia, nua, com um colchão de arame sem nada em cima do
arame, nem ao menos uns jornais. Ali, fechada, tratada por mãe
neurótica, que lhe dava o comer como a um cão. Isto não se passou
aqui em Lagos, mas perto de Albufeira, na Guia. É o caso do filme do
Truffaut e do Kaspar Hauser. Os médicos, esses peritos da doença,
interessavam-se e muito mais se o pai (que morreu num acidente
precisamente quando começam as desventuras da Isilda) fosse algum
latifundiário. E deixasse a viúva com fartos bens. Para azar (de
todos: da viúva, da Isilda, dos peritos) a mãe vive a expensas de
um filho pedreiro – são quatro irmãos: o primeiro morreu, há
dois rapazes normais e a Isilda – e com um pequeno subsídio.”
Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, p. 167.
Savage of Aveyron
1807
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