“É-se
coleccionador de livros por muitas e várias razões. Há de tudo:
por amor dos objectos especiais e valiosos; pela lógica económica
ou pela sua cotação no mercado; pelo seu valor ostentatório,
porque são um meio de auto-afirmação social, um indicador de alta
cultura e de refinamento estético; pelo desejo de alcançar o
estatuto e o prestígio de ser o maior coleccionador, de possuir
aquela peça mais rara de todas; por ocupação ociosa ou para dar um
sentido ao (um luxo de ricos); por uma impressão de autenticidade,
contra a produção em série da economia moderna do consumo e da
grande distribuição, que tende a exacerbar o carácter efémero das
obras (hoje o ritmo de publicação é tal, a inflação das
novidades é tal, que as livrarias regurgitam livros, os quais morrem
cada vez mais depressa, aparecendo e desaparecendo dos escaparates e
das estantes a grande velocidade), em detrimento da originalidade e
da qualidade estética; por fracasso da vida emocional ou porque se
desenvolveu uma fixação relacionada com a ordem, o controlo, a
eficiência, a disciplina da arrumação e da organização; porque
os livros existem para ser contados e classificado; por necessidade
neurótica de controlo da ansiedade, para diminuir a angústia e
confinar o caos, perseguir a desordem, procurar uma lógica na
multiplicidade de obras que a sociedade coloca à nossa disposição
(na opinião de muita gente, como Walter Benjamin, as colecções
assentam nessa tensão dialéctica entre a ordem e a desordem);
porque precisam das bibliotecas para se exprimirem, pelo efeito
pacificador da identificação com os livros, porque é uma forma de
se reconhecer a si próprio na biblioteca e se projectar fora de si,
por vezes como um ego ideal (a biblioteca), em que a imagem
reflectida é mais completa, mais perfeita (tornando-a,
simultaneamente, objecto de identificação e um rival); por
nostalgia ou contra o esquecimento, para contemplar e recuperar o
passado, apropriar-se dele, porque os livros representam épocas
diferentes, inserem na memória pontos de referência e remetem para
experiências vividas (cada livro, porque suscitou emoções no
comprador, conta uma história de aquisição e renova por isso a
memória pessoal); por excitação contracultural, quando o interesse
do coleccionador se centra nos autores e obras associados à
marginalidade ou a uma espécie de inaptidão para a vida prática
(mas com uma enorme capacidade para transformar o seu fracasso em
capital simbólico); pelo valor estético, o prazer da forma (a cor,
o aspecto, etc.), mais do que o conteúdo (estes serão, mais do que
leitores, folheados de livros), pela mais trivial materialidade,
porque se gosta de tocar nos livros, como se eles apreciassem o
contacto humano, e de os cheirar (como o pasteleiro os seus pastéis
acabados de sair do forno); pelo vício da posse e de fazer mais
aquisições, pela necessidade de renovar o prazer do momento da
compra (o mais parecido com a felicidade), pela pulsão de incorporar
mais peças à colecção, pelo gozo e a intensidade do imprevisto,
do golpe de sorte (com os livros acontece muitas vezes isto: vamos a
um sítio onde julgamos que podemos encontrar alguma obra rara e não
encontramos nada, mas da vez seguinte, sem estarmos à espera,
vemo-lo numa estante ou numa pilha mesmo à nossa frente); ou por
tudo isso (e mais algumas coisas que não referi, porque seria
abusivo estender muito mais a lista) ao mesmo tempo.”
Pacheco,
Luiz, O
Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros
(Correspondência, 1966-2001),
transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa,
Tinta-da-China, 2017, pp. 18-20.
Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra
Luís Filipe Cândido de Oliveira
198-
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