14 de junho de 2022

Ser coleccionador de livros

É-se coleccionador de livros por muitas e várias razões. Há de tudo: por amor dos objectos especiais e valiosos; pela lógica económica ou pela sua cotação no mercado; pelo seu valor ostentatório, porque são um meio de auto-afirmação social, um indicador de alta cultura e de refinamento estético; pelo desejo de alcançar o estatuto e o prestígio de ser o maior coleccionador, de possuir aquela peça mais rara de todas; por ocupação ociosa ou para dar um sentido ao (um luxo de ricos); por uma impressão de autenticidade, contra a produção em série da economia moderna do consumo e da grande distribuição, que tende a exacerbar o carácter efémero das obras (hoje o ritmo de publicação é tal, a inflação das novidades é tal, que as livrarias regurgitam livros, os quais morrem cada vez mais depressa, aparecendo e desaparecendo dos escaparates e das estantes a grande velocidade), em detrimento da originalidade e da qualidade estética; por fracasso da vida emocional ou porque se desenvolveu uma fixação relacionada com a ordem, o controlo, a eficiência, a disciplina da arrumação e da organização; porque os livros existem para ser contados e classificado; por necessidade neurótica de controlo da ansiedade, para diminuir a angústia e confinar o caos, perseguir a desordem, procurar uma lógica na multiplicidade de obras que a sociedade coloca à nossa disposição (na opinião de muita gente, como Walter Benjamin, as colecções assentam nessa tensão dialéctica entre a ordem e a desordem); porque precisam das bibliotecas para se exprimirem, pelo efeito pacificador da identificação com os livros, porque é uma forma de se reconhecer a si próprio na biblioteca e se projectar fora de si, por vezes como um ego ideal (a biblioteca), em que a imagem reflectida é mais completa, mais perfeita (tornando-a, simultaneamente, objecto de identificação e um rival); por nostalgia ou contra o esquecimento, para contemplar e recuperar o passado, apropriar-se dele, porque os livros representam épocas diferentes, inserem na memória pontos de referência e remetem para experiências vividas (cada livro, porque suscitou emoções no comprador, conta uma história de aquisição e renova por isso a memória pessoal); por excitação contracultural, quando o interesse do coleccionador se centra nos autores e obras associados à marginalidade ou a uma espécie de inaptidão para a vida prática (mas com uma enorme capacidade para transformar o seu fracasso em capital simbólico); pelo valor estético, o prazer da forma (a cor, o aspecto, etc.), mais do que o conteúdo (estes serão, mais do que leitores, folheados de livros), pela mais trivial materialidade, porque se gosta de tocar nos livros, como se eles apreciassem o contacto humano, e de os cheirar (como o pasteleiro os seus pastéis acabados de sair do forno); pelo vício da posse e de fazer mais aquisições, pela necessidade de renovar o prazer do momento da compra (o mais parecido com a felicidade), pela pulsão de incorporar mais peças à colecção, pelo gozo e a intensidade do imprevisto, do golpe de sorte (com os livros acontece muitas vezes isto: vamos a um sítio onde julgamos que podemos encontrar alguma obra rara e não encontramos nada, mas da vez seguinte, sem estarmos à espera, vemo-lo numa estante ou numa pilha mesmo à nossa frente); ou por tudo isso (e mais algumas coisas que não referi, porque seria abusivo estender muito mais a lista) ao mesmo tempo.”

Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, pp. 18-20.


Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra
Luís Filipe Cândido de Oliveira
198-

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