“Nos últimos anos, as minhas várias moradas eram «bases» gratuitas, em pessoas amigas. Vantagens e desvantagens, como tudo na vida. Andava metido em sarilhadas, nunca estava à minha vontade, um turbilhão, por vezes. Neste buraco actual, onde já fiam, fecho a porta e haja o que houver, menos fogo, não me ralo até de manhã. A pensão, ainda em obras, vizinha do Bairro Alto, tem a clientela que se calcula: putedo e respectivos chulos, amantes, engates de ocasião. Isto dá cenas de pancadaria, correrias escadas abaixo. Se estou a ler, interrompo. É mais interessante ouvir. E já me habituei ao ritmo da casa, toda a noite entradas e saídas. Não é comigo, não vejo as caras. A noite passada, a ler, para talvez fazer um breve comentário no Popular, o livro da Isabel do Carmo e da Fernanda Fráguas, Puta de Prisão, com 50 casos de prostitutas narrados da Cadeia de Custóias, eu tinha, no quarto ao lado do meu, uma garota a ser esmifrada por um chuleco, com berraria das 4 às 8 da matina (ele fechou a porta à chave e sacou-lhe a mala), a realidade dos factos tão perto excedia a realidade dos factos do livro.”
Pacheco, Luiz, O Grilo na Varanda – Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001), transcrição, introdução e notas de João Pedro George, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, pp. 213-214.
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