27 de fevereiro de 2022

Santiago das Bichas

"Estàr de bichas, he ter tomado sanguexugas. Na Provincia de Entre-Douro, & Minho, no Concelho de Cabeceiras de Basto, a Freguezia de Santiago da Faya se chama vulgarmente Santiago das Bichas, porque em hum regato, que por ella corre, há muitas sanguexugas, & desde as primeiras Vesperas deste Santo atè as segundas concorre a elle em romaria muita gente saã, & enferma de varios males, & huns mandão tirar estes bichos para os porem em si, outros mettem as pernas na agoa, & afferrandose nellas lhes tirão quantidade de sangue, com que se achão melhor, & se attribue a milagre do Santo, não o pegar das sanguexugas, pois he seu natural, mas o obrarem tanto bem repentinamente." 

"Bicha" in Bluteau, Rafael, Vocabulario Portuguez e latino, vol. 2, letras B-C, Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712, pp. 118-119. daqui

dance-mask (kolam mask)
Sri Lanka

26 de fevereiro de 2022

Caminho de sirga

"sirga
NÁUTICA ato de puxar ou rebocar embarcação por meio de corda ou cabo; sirgagem
NÁUTICA corda usada para puxar uma embarcação junto da margem de um rio, em zona de caudal fraco ou em caso de ausência de vento favorável, por vezes com auxílio de bois ou cavalos" daqui


Kinsey, William Morgan, Portugal illustrated: in a series of letters, London, published for the author, by Teuttel and Würtz, Treuttel Jun. and Richter, 1829, p. 372. daqui

25 de fevereiro de 2022

António Novais

Retrato do fotógrafo António Novais
José Malhoa
1901
Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado

"Fotógrafo pouco estudado, integrava uma família de artistas ligados à fotografia, tanto os seus irmãos, como os conhecidos sobrinhos, Mário e Horácio Novais. António Novais, “Fotógrafo da Casa Real Portuguesa”, colaborou em periódicos como a Ilustração PortuguesaOcidenteBrasil-PortugalA ÉpocaA Nação e parece cessar esta sua actividade profissional, iniciada em 1874, com a afirmação do novo governo republicano." daqui

24 de fevereiro de 2022

Enterrar Voltaire

"He suffered much pain on his deathbed, about which absurd legends were quickly fabricated; on May 30 he died, peacefully it seems. His nephew, the Abbé Mignot, had his body, clothed just as it was, swiftly transported to the Abbey of Scellières, where he was given Christian burial by the local clergy; the prohibition of such burial arrived after the ceremony. His remains were transferred to the Panthéon during the Revolution in July 1791." daqui


Voltaire
Jean-Antoine Houdon
1778
Museu do Louvre

23 de fevereiro de 2022

Aos condutores de carroças!

"Aos condutores de carroças!"
Editor: Comissão Administrativa dos Condutores de Carroças
Tipografia: Associação dos Compositores Tipográficos
ca. 1925
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE, Propaganda apreendida, n.º 166

21 de fevereiro de 2022

Ordenação sobre os lobos

“Dom João per graça d’Deos Rei de Portugal, e dos Algarves, daquẽ e dalem mar em África Senhor de Guinee, e da cõquista navegação e comercio de Ethiopia, Arabia, Persia, e da India etc. Faço saber aos que esta minha carta virẽ que eu sou enformado do grãde dãno que hos lobos fazem nos gados, e como isso he muyta causa de nam aver tãta criação de gados, como averia se os nam ouvesse. E querẽdo a isso prover e dar algum remedio como hos homẽs tenham mais võtade de os matar, ey por bem que todo o homem que matar lobo velho aja por cada hũ lobo que assi matar tres mil reaes, e se matar lobo pequeno atee quinhentos, e quem emprazar cachorros e os mostrar, aja quatrocentos reaes. (...) E pera que as pessoas que hos ditos lobos assi matarem averem bom pagamẽto do dito premio, e lhe ser logo feyto sem dilaçam algũa, ey por bem que tanto tãto que algũa pessoa matar lobo se vaa aa cidade, villa, ou lugar em cujo termo o matar, e mostre a cabeça e pele do tal lobo ao juyz da tal cidade, villa, ou lugar, o qual mandara fazer assento disso, e tanto que for feyto o dito assento, ho dito juyz passara mãdado pera ho almoxarife se estiver presente na dita cidade, villa, ou lugar.daqui

7 de Agosto de 1549


Cão, Cordeiro e Lobo
Almada Negreiros
1936
Museu do Abade de Baçal

20 de fevereiro de 2022

Queimem-me também

"In the early months of 1933 Graf was on a lecture tour in Austria. It was during this time, shortly after Hitler's rise to power, that the Nazis ordered the first of the book burnings. With the exception of Prisoner's All, Graf's books were recommended rather than burned by the Nazi regime. This prompted Graf to write his famous "Verbrennt mich!" ("Burn me too"), perhaps one of the most famous anti-Nazi statements, which was published in the Wiener Arbeiter-Zeitung on May 22, 1933." daqui

Oskar Maria Graf
Georg Schrimpf
1918
Lenbachhaus

18 de fevereiro de 2022

Noli me tangere

 Noli me Tangere
Ticiano
ca. 1514
National Gallery

"Risen from the dead, Christ appears to his grieving follower, Mary Magdalene, in the Garden of Gethsemane. At first she mistakes him for a gardener but then reaches out her hand in wonder. Christ says, ‘Do not touch me’ (in Latin, noli me tangere); it is time for his followers to let go of his earthly presence and await the Holy Ghost (John 20: 14–18). The focus of the picture is on the interplay of gesture and gaze between Christ and Mary Magdalene." daqui

17 de fevereiro de 2022

O Bispo de Beja

{ O Bispo de Beja
Excepção única à regra de a & etc não fazer reedições.
Razão: dado o facto de o folheto original, colecção Contramargem, ter sido apreendido pelas polícias Judiciária e de Segurança Pública à ordem do Ministério Público, seguido de processo instaurado ao editor por crime de abuso de liberdade de imprensa (isto em 1980, seis anos volvidos sobre a liberdade instaurada a 25 de Abril), decide o editor, em pleno decurso do processo, voltar ao objecto do crime desta vez com caricatura de Francisco Valença, versando o polémico bispo de Beja, na capinha da reedição. Processo arquivado sem água-vai ao editor, regados a gasolina e sujeitos a auto-da-fé no pátio do Tribunal da Boa Hora os exemplares «apreendidos», não sofreu a reedição qualquer medida persecutória. Tudo bons rapazes na justiça portuguesa!”

Domingos, Paulo da Costa (coord.), & etc, uma editora no subterrâneo, Lisboa, Livraria Letra livre, 2013, p. 49.


Entrevista a Vitor Silva Tavares (Diário de Lisboa, 21 de Julho de 1980)

[DL] E então uma denúncia, para mais vaga e assente apenas num critério moralista, basta para pôr a funcionar a máquina da Justiça?
[VST] Basta. A AD está no Poder. A ignorância, a estupidez, o provincianismo descabelado, a sanha inquisitorial, a repressão ignara, a brotoeja denunciatória, o primarismo moralizante florescem em terreno propício.
Em princípio, uma atitude destas, num momento destes, só pode causar engulhos, pela vesguise demonstrada, à hierarquia religiosa e ao poder civil. Estamos em período de caça ao voto (o lobo disfarçado de carneiro…), nos Brasis o Papa, pressionado pelos bispos sensíveis à miséria social e à tirania da oligarquia político-financeira, propõe mais moderação nas reacionárias seculares tradições ─ o que guarda seus ecos, distantes, hélas!, na recente lusa carta episcopal. Mas a brandura dos costumes, o desvario patológico, a febril vindicta praticista de uma direita ressabiada pelo 25 de Abril do Povo-MFA reinstalam o clima propício à defesa da Pátria, dos bons costumes, da sã moralidade, das virtudes da raça ─ breve, à pistola contra a cultura, sob o álibi «legalista» e «democrático», «humanista» e «ecuménico» propagandeado pelo Executivo vigente.” daqui


Placa de cerâmica com as armas de D. Jorge de Almeida, Bispo de Coimbra entre 1481 e 1543
1503
Museu Nacional Machado de Castro

16 de fevereiro de 2022

Um livro que serve

Para que serve um livro e para que serve a leitura de um livro? Um livro que serve tira-nos dos compartimentos da nossa cabeça, da jaula do eu, do ponto cego da nossa rotina, refaz o real segundo coordenadas inesperadas, informações desconhecidas, dilemas impensados. Talvez seja essa a sua função principal: imaginar o impensado e o insentido, imaginá-los em segundo grau enquanto criação de potencialidade, quer dizer, como pensamento pensável e sentimento sentível por uma nova ordem de linguagem à qual posso aceder exteriorizando-me por instantes nessa espiral de palavras. O livro que serve é a actualização radical dessa potencialidade para quem lê, para quem escreve, para quem edita. É um operador material de inteligência e sensibilidade, um instrumento de crítica da ordem do mundo no interior do sujeito, um espaço de ser que se abre no papel.”

Portela, Manuel, Observador-participante de um catálogo-mundo: a Antígona em 2019” in Oliveira, Luís (org.), Antígona 40 Anos + 1, Lisboa, Antígona, 2020, p. 31.

A Youthful Saint Reading
Girolamo da Santacroce
ca. 1512-25
National Gallery

15 de fevereiro de 2022

Fernando Ribeiro de Mello

Fernando Ribeiro de Mello foi um pequeno editor, “marginal” por imposição externa e por adopção voluntária, que operou sempre por fora das corporações profissionais e das cadeias comerciais que ditavam as regras do mercado editorial, e que conseguiu um notável sucesso financeiro e de prestígio cultural durante pouco mais de dez anos, atravessando dois processos em tribunal, a pressão da censura e da polícia política, o fim de um regime ditatorial, um escaldante período revolucionário e a instauração de um novo regime democrático. Aos 30 anos, tinha garantido uma existência folgada apenas a publicar livros que traziam um ferrete irresistível de “proibido” ou “proibível” e que se vendiam a preços proibitivos. Publicou, ao longo de vinte e quatro anos, oitenta e cinco títulos, alguns dos quais foram enormes sucessos comerciais, com inúmeras edições. Atraiu e soube manter a colaboração de um grupo de jovens artistas plásticos, poetas, jornalistas, grafistas, alguns dos quais fizeram com ele os melhores livros da Afrodite (e alguns dos melhores das suas carreiras).”

Marques, Pedro Piedade (org.), Editor Contra: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite, s. l., Montag, 2015, p. 257.


Female lucubration
Print made by: Philip Dawe
After: John Foldsone
1772

14 de fevereiro de 2022

Publicar livros

    Publicar livros nunca foi tarefa fácil e, no mundo espectacular das mercadorias dos dias de hoje, é uma actividade muito mais incerta. Vivemos na era do Big Mac, dos best-sellers, promovidos por jornais e revistas monolíticos que se reclamam representantes do actual mundo cultural, e os seus valores predominam num mundo governado pelo grande capital, tanto na edição como na distribuição. Os livros que marcaram as várias lutas anticapitalistas do século passado e a sua história ainda são por vezes publicados por editoras universitárias, se contarem com a promoção de cursos e programas académicos. Mas todos os outros livros ditos clássicos são esquecidos ou ficam mesmo por publicar. São livros que vendem muito pouco ou quase nada, e que, por isso, são publicados apenas por pequenas editoras em tiragens de poucas centenas de exemplares. Para uma editora de esquerda, e num mundo que se deslocou decididamente para a direita (até quando, no entanto?), é muito difícil escolher livros que têm valor no presente, uma mensagem que talvez mais ninguém publique, uma visão mais genuína e diferente da história, e livros que talvez a própria história tenha esquecido.”

Mailer, Phil, Os 40 anos da Antígona vistos de Dublin, Irlanda” in Oliveira, Luís (org.), Antígona 40 Anos + 1, Lisboa, Antígona, 2020, pp. 47-48.


Vista interior de la Biblioteca del Escorial
J. Laurent
1867

13 de fevereiro de 2022

Censura

    “Escapava a esta vigilância diária a edição de livros. Não havia, era impossível haver um exército de censores que a tempo e em leitura de página a página investigasse tão grande número de folhas de papel. Os livros chegavam às livrarias intimidados por uma espada virtual. Porque passados que fossem dias, ou semanas, ou meses, podia o zumbido delator rondar ouvidos e uma brigada que gostava de surpresas surgir para retirar do mercado. Os exemplares não vendidos eram desviados para autos-da-fé modernos, a gasolina, que reduziam a cinza o trabalho de escritores, de tradutores, de editores, de impressores. Porque em Portugal estava garantida a defesa das saúdes moral e política dos cidadãos; porque Portugal era uma terra onde valia a pena viver, era uma terra de gente feliz.
    Se as editoras abusassem 一 o que poderia tomar-se como preâmbulo de outros atrevimentos perigosos a raiva censória subia de tom; em tempos de desvario poderia chegar (como chegou) à apreensão de Madame Bovary, uma história de provinciana ociosa que enganava o marido e andava a ser lida em português, sem percalços, por anos que somavam quase um século. Neste frenesi houve editoras mártires e com uma audácia de liberdade europeia a Arcádia, a Ulisseia, e outras; houve editoras amigas do Regime, como a Verbo; houve, por exemplo, uma editora de lápis “softizador”, a Livros do Brasil com um lápis interno que softizava os textos antes de passarem à tipografia. O seu editor tinha uma noção de integralidade compatível com o abaixamento de tom do que era gritado nos originais com verbo mais alto. Lins do Rego, por exemplo, foi metodicamente castrado em todos os “palavrões”; Uma Negrinha à Procura de Deus, de Bernard Shaw, foi precedido por uma nota tonta que nos convidava a tomar toda a desenvoltura daquelas dúvidas por qualquer coisa alheia aos crentes da igreja católica; e ainda hoje se acredita mal no que uma tradução portuguesa conseguiu fazer a favor dos hábitos da editora e em desfavor de The Catcher in the Rye de J. D. Salinger. Nos seus muitos anos de convívio com a censura, a Livros do Brasil apenas teve o desaire de Jubiabá de Jorge Amado, e a proibição de reeditar um livro de Aquilino, impertinente para com a imagem oficialmente pretendida para os príncipes de Portugal.”

Texto de Aníbal Fernandes in Marques, Pedro Piedade (org.), Editor Contra: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodites. l., Montag, 2015, pp. 22-23.


Ataque às instalações da Censura
Mário Varela Gomes
26 de Abril de 1974
"Aspecto do edifício onde funcionaram as instalações da Comissão de Censura, na Rua da Misericórdia, durante o ataque de que foi alvo. Na foto, um indivíduo lança pela janela provas de censura"

12 de fevereiro de 2022

Ler o Livro

     No que aos livros diz respeito, esta submissão vazia tem o mais perfeito complemento nas inúmeras defesas da leitura em abstracto recorrentemente emitidas pela «indústria cultural» do século XXI. O potencial emancipatório da capacidade de leitura é inegável, mas «Ler», assim mesmo em abstracto, ler não importa o quê, soa mais a uma ordem ou um comando do que a qualquer desafio ou convite à reflexão. A mesma forma vazia encontra-se nos textos encomendados aos habituais intelectuais de serviço em defesa do «Livro» em geral como objecto especial ou mágico. Estes elogios pseudopoéticos ao livro em abstracto são a publicidade da forma vazia da «indústria cultural», indiferente a qualquer conteúdo desde que este seja bom para o negócio.”

Lamas, Bruno, Enquanto existir dinheiro…” in Oliveira, Luís (org.), Antígona 40 Anos + 1, Lisboa, Antígona, 2020, p. 104.

The Painter's Father, Louis-Auguste Cézanne
Paul Cézanne
ca. 1865
National Gallery

11 de fevereiro de 2022

Contratados em Angola

“Eu, patriota, acho que já era antes de ir para a Mocidade Portuguesa. Não me pergunte porquê mas eu gostava de ser português. Era a minha terra. E saio da Mocidade Portuguesa com aquilo na cabeça. Eh pá, tínhamos sido dos primeiros povos a abolir a escravatura, tínhamos um tipo de convívio com o Ultramar, com o preto, que os outros povos não tinham. É assim que parto daqui. Só que logo no dia em que o barco atraca ao porto do Lobito, e estou eu ainda na amurada, vejo um capataz, necessariamente branco, com uma fileira de pretos, aí uns 30 ou 40, presos com cordas muito grossas nos pulsos e nos tornozelos para a estiva. Pergunto a um engenheiro belga que já tinha experiência de África o que era aquilo, e ele diz-me que eram os contratados. «Mas eles estão acorrentados.» «Estão, porque é assim.» Meses depois já eu sabia timtim-por-timtim o que era essa história dos contratados e como é que a escravatura continuava em Angola, e até o apartheid e tudo.”

Entrevista a Vitor Silva Tavares por Alexandra Lucas Coelho (Público, 2007) in Domingos, Paulo da Costa (coord.), & etc, uma editora no subterrâneo, Lisboa, Livraria Letra livre, 2013, pp. 126-127.


Coleira de escravo
Museu Nacional de Arqueologia

"este escra/uo he de Luis Cardoso de Mello m/or em Ben/avente"

10 de fevereiro de 2022

Edição mercantil moderna

Com o surgimento da imprensa moderna, o livro tornou-se o primeiro objecto cultural de reprodução em série. O facto de as técnicas modernas de reprodução terem atingido primeiro o livro religioso e aí alcançado um amplo sucesso «comercial» mostra bem que o livro, enquanto objecto reprodutível, estava também no centro da longa transição histórica do velho fetichismo religioso pré-moderno para o novo fetichismo da mercadoria, do dinheiro e do capital da modernidade. Através dessa reprodução técnica, o livro enquanto artefacto cedo perdeu a individualidade, a diferença e a experiência «autêntica» inerentes aos produtos das outras artes (pintura, escultura, música, etc.). Tal como as moedas são cunhadas, os livros são reproduzidos. Assim, analogamente à moeda, cada livro é também um mero exemplar, uma cópia de um original na verdade inexistente, bem ao jeito da forma social de diferenciação da mercadoria. Quando o dinheiro e o livro se encontraram nasceu a edição mercantil moderna.”

Lamas, Bruno, Enquanto existir dinheiro…” in Oliveira, Luís (org.), Antígona 40 Anos + 1, Lisboa, Antígona, 2020, p. 100.


An Old Woman Reading
Imitator of David Teniers the Younger
Artist dates 1610 - 1690

9 de fevereiro de 2022

Gozosíssimas

    Vou para a cama. O vinho pesa-me na cabeça. Bebo água fria para desenjoar a gorja. Durmo como um bendito. Acordo no escuro, cedo, 6 ou 5 horas, há um grupo na Pensão que se está a levantar, batem portas. Estou excitadíssimo. O meu homem virá ao encontro? Onde o hei-de meter? Nestes quartos ouve-se tudo. Abjecção. Remorsos. Decido não ir. Mistura a Deolinda com o António e sem mexer na picha estou quase a vir-me. De repente, é tudo tão violento que tenho de bater uma.
    Como a natureza previu todas as nossas fraquezas e ausências, dotou-nos também com outro caralho para o cu detrás. Meto o dedo (médio?) todo no cu, bato a punheta. E a ejaculação, forte porque há dias que estou sem deitar nada cá para fora, dá-me contracções no esfíncter. Gozosíssimas. Venho-me imenso. Estou cada vez mais excitado. Cada passo na escada parece julgo que é o António que vem e me penetra e me obriga a chupar-lhe o delicioso caralho que não vi. Escândalo. Tribunal Militar. Vergonha. Filhos a saberem tudo. Loucura. Suicídio. Tomo meio Calmax. A pouco e pouco a corda vai-se aligeirando, estou melhor. Mas que vontade de ter pecado. De pecar. Como assim: de viver.
    Descubro que o êxito e o fracasso são uma e a mesma cadeia e em tudo. O êxito para cima, o fracasso para baixo, e quando digo baixo digo baixo: sujidões, dívidas, vergonhas, podridão, loucura. Mas o que torna tudo igual é que ambas as cadeias se encontram, nada a fazer, meus caros, daqui a cem anos ninguém se lembra.
    E a nossa lição-abjecção a quem aproveitará?
    Já tanto faz.
    Tanto nos faz.

            Braga, 16 ou 17 de Outubro, 1961”

Pacheco, Luiz, O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, Braga, Fundação Cultural Bracara Augusta, 2000, pp. 49-51.



Estudo de nu masculino
Amadeo de Souza-Cardoso
c. 1912

8 de fevereiro de 2022

Holodomor

"Holodomor, man-made famine that convulsed the Soviet republic of Ukraine from 1932 to 1933, peaking in the late spring of 1933. It was part of a broader Soviet famine (1931–34) that also caused mass starvation in the grain-growing regions of Soviet Russia and Kazakhstan. The Ukrainian famine, however, was made deadlier by a series of political decrees and decisions that were aimed mostly or only at Ukraine. In acknowledgement of its scale, the famine of 1932–33 is often called the Holodomor, a term derived from the Ukrainian words for hunger (holod) and extermination (mor)." daqui


Woman collective farmer with newly harvested wheat
Krasnodar (vicinity), USSR (Union of Soviet Socialist Republics)
between 1930 and 1940?

7 de fevereiro de 2022

Caras, bocas, olhos, risos, mãos e pernas

O pretexto é: que me disseram que a capela ou igreja é muito, muito antiga e tem muito que ver; faço-me de Proença ou Torga, a coscuvilhar raridades perdidas na Província, preocupado com velharias e ossos, quando o que quero são caras e bocas e olhos e risos. E mãos e pernas. Tudo, etc., de mulheres. Dou com a capela aberta: está lá um baptizado. O padre tem cara de cabra doente. Puta que o pariu mais ao pai da criança (que, depois, vim a sabê-lo, está em Angola-é-Nossa. Boa ocasião de conhecer melhor a mãe do neófito, para compensá-la do patriotismo do marido).”

Pacheco, Luiz, O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, Braga, Fundação Cultural Bracara Augusta, 2000, pp. 26-27.

Desenho da Capela de Nossa Senhora de Mércules situada nos arredores de Castelo Branco
Álvaro Canelas
1932
Museu Francisco Tavares Proença Júnior

6 de fevereiro de 2022

Caixa de rapé

 Snuffbox with portrait of Louis XVI (1754–1793), King of France
Joseph Etienne Blerzy 

5 de fevereiro de 2022

Café Central

Sentava-me habitualmente numa mesa mais à esquerda do café. À direita, sentavam-se os gerentes de bancos, os pides, os grandes proprietários e os comerciantes mais antigos daquela cidade; os lugares destinados aos salazaristas ou coisa melhor esgotavam-se com frequência, pois rumavam até ali personagens de outras terras. Refúgio de fidalgos, ponto de encontro de gente de costas voltadas às avessas, tentando controlar as leis que dominavam a sua vida, historicamente condenados a uma revolução adiada e fatal (Vaneigem), neste Café Central, depositário de tantas histórias, tinha até lugar reservado um antigo chefe da polícia, que, dizia-se, pendurava reclusos por uma corda num poço, por ele mandado abrir dentro da própria esquadra, para simular afogamento. Dúvidas houvesse de que o fascismo é a identificação com a morte.
    Do meu lado, discutiam-se outros temas: a cultura, as grandes escolhas de vida, as fugas ao salazarismo — todos nós sempre vigiados pela PIDE, que tinha uma delegação em Santarém, «terra onde não havia literatura», segundo Herberto Helder. Vivíamos nessa época sempre a olhar para o lado, desconfiados do vizinho. Mas operava-se assim uma clivagem: sabíamos que estávamos do lado certo do café e da História. E foi nessa cumplicidade que perdurou uma relação consistente, para sempre, entre alguns de nós.”

Oliveira, Luís, “À guisa de prefácio. A génese da editora” in Oliveira, Luís (org.), Antígona 40 Anos + 1, Lisboa, Antígona, 2020, p. 15.


Fachada do café Nicola
1929

4 de fevereiro de 2022

Fabergé

Bay Tree Easter Egg
House of Fabergé
1911

"In addition to the eggs with cockerel and hen, Carl Fabergé made an Easter egg for Maria Feodorovna with a mechanical bird of paradise with natural multicolored feathers. The court jeweler must have known that Maria Feodorovna loved birds and “nature and everything that is in it.” In the 1900s in the Anichkov Palace, her residence, there was a special room with an enormous cage “with innumerable tiny birds, which the empress loved greatly.”