“Escapava a esta vigilância diária a edição de livros. Não havia, era
impossível haver um exército de censores que a tempo e em leitura
de página a página investigasse tão grande número de folhas de
papel. Os livros chegavam às livrarias intimidados por uma espada
virtual. Porque passados que fossem dias, ou semanas, ou meses, podia
o zumbido delator rondar ouvidos e uma brigada que gostava de
surpresas surgir para retirar do mercado. Os exemplares não vendidos
eram desviados para autos-da-fé modernos, a gasolina, que reduziam a
cinza o trabalho de escritores, de tradutores, de editores, de
impressores. Porque em Portugal estava garantida a defesa das saúdes moral e política dos cidadãos; porque Portugal era uma terra onde valia a pena viver, era uma terra de gente feliz.
Se as editoras abusassem 一 o que poderia tomar-se como preâmbulo de outros atrevimentos perigosos
一
a
raiva censória subia de tom; em tempos de desvario poderia chegar
(como chegou) à apreensão de Madame
Bovary,
uma história de provinciana ociosa que enganava o marido e andava a
ser lida em português, sem percalços, por anos que somavam quase um
século. Neste frenesi houve editoras mártires e com uma audácia de
liberdade europeia 一
a
Arcádia, a Ulisseia, e outras; houve editoras amigas do Regime, como
a Verbo; houve, por exemplo, uma editora de lápis “softizador”,
a Livros do Brasil com um lápis interno que softizava os textos
antes de passarem à tipografia. O seu editor tinha uma noção de
integralidade compatível com o abaixamento de tom do que era gritado
nos originais com verbo mais alto. Lins do Rego, por exemplo, foi
metodicamente castrado em todos os “palavrões”; Uma
Negrinha à Procura de Deus, de Bernard Shaw, foi precedido por uma nota tonta que nos convidava a
tomar toda a desenvoltura daquelas dúvidas por qualquer coisa alheia
aos crentes da igreja católica; e ainda hoje se acredita mal no que
uma tradução portuguesa conseguiu fazer a favor dos hábitos da
editora e em desfavor de The
Catcher in the Rye
de
J. D. Salinger. Nos seus muitos anos de convívio com a censura, a
Livros do Brasil apenas teve o desaire de Jubiabá
de
Jorge Amado, e a proibição de reeditar um livro de Aquilino,
impertinente para com a imagem oficialmente pretendida para os
príncipes de Portugal.”
Texto de Aníbal Fernandes in Marques, Pedro Piedade (org.), Editor Contra: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite, s. l., Montag, 2015, pp. 22-23.
Ataque às instalações da Censura
Mário Varela Gomes
26 de Abril de 1974
"Aspecto do edifício onde funcionaram as instalações da Comissão de Censura, na Rua da Misericórdia, durante o ataque de que foi alvo. Na foto, um indivíduo lança pela janela provas de censura"
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