“Sentava-me
habitualmente numa mesa mais à esquerda do café. À direita,
sentavam-se os gerentes de bancos, os pides, os grandes proprietários
e os comerciantes mais antigos daquela cidade; os lugares destinados
aos salazaristas ou coisa melhor esgotavam-se com frequência, pois
rumavam até ali personagens de outras terras. Refúgio de fidalgos,
ponto de encontro de gente de costas voltadas às avessas, tentando
controlar as leis que dominavam a sua vida, historicamente condenados
a uma revolução adiada e fatal (Vaneigem), neste Café Central,
depositário de tantas histórias, tinha até lugar reservado um
antigo chefe da polícia, que, dizia-se, pendurava reclusos por uma
corda num poço, por ele mandado abrir dentro da própria esquadra,
para simular afogamento. Dúvidas houvesse de que o fascismo é a
identificação com a morte.
Do
meu lado, discutiam-se outros temas: a cultura, as grandes escolhas
de vida, as fugas ao salazarismo — todos nós sempre vigiados pela
PIDE, que tinha uma delegação em Santarém, «terra onde não havia
literatura», segundo Herberto Helder. Vivíamos nessa época sempre
a olhar para o lado, desconfiados do vizinho. Mas operava-se assim
uma clivagem: sabíamos que estávamos do lado certo do café e da
História. E foi nessa cumplicidade que perdurou uma relação
consistente, para sempre, entre alguns de nós.”
Oliveira, Luís, “À guisa de prefácio. A génese da editora” in Oliveira, Luís (org.), Antígona 40 Anos + 1, Lisboa, Antígona, 2020, p. 15.
Fachada do café Nicola
1929
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