5 de fevereiro de 2022

Café Central

Sentava-me habitualmente numa mesa mais à esquerda do café. À direita, sentavam-se os gerentes de bancos, os pides, os grandes proprietários e os comerciantes mais antigos daquela cidade; os lugares destinados aos salazaristas ou coisa melhor esgotavam-se com frequência, pois rumavam até ali personagens de outras terras. Refúgio de fidalgos, ponto de encontro de gente de costas voltadas às avessas, tentando controlar as leis que dominavam a sua vida, historicamente condenados a uma revolução adiada e fatal (Vaneigem), neste Café Central, depositário de tantas histórias, tinha até lugar reservado um antigo chefe da polícia, que, dizia-se, pendurava reclusos por uma corda num poço, por ele mandado abrir dentro da própria esquadra, para simular afogamento. Dúvidas houvesse de que o fascismo é a identificação com a morte.
    Do meu lado, discutiam-se outros temas: a cultura, as grandes escolhas de vida, as fugas ao salazarismo — todos nós sempre vigiados pela PIDE, que tinha uma delegação em Santarém, «terra onde não havia literatura», segundo Herberto Helder. Vivíamos nessa época sempre a olhar para o lado, desconfiados do vizinho. Mas operava-se assim uma clivagem: sabíamos que estávamos do lado certo do café e da História. E foi nessa cumplicidade que perdurou uma relação consistente, para sempre, entre alguns de nós.”

Oliveira, Luís, “À guisa de prefácio. A génese da editora” in Oliveira, Luís (org.), Antígona 40 Anos + 1, Lisboa, Antígona, 2020, p. 15.


Fachada do café Nicola
1929

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