1 de fevereiro de 2022

Não é um relógio, é uma panela de sopa

A minha avó ia comigo à sopa dos pobres, ali aquele edifício em frente ao Parlamento, buscar a sopa e o pão escuro que muitas vezes era a base da alimentação. E há um pormenor completamente surrealista. Na casa onde ainda hoje vivo só há um objecto do que era a casa velha. É um relógio de cavalinho. Está lá na parede. É um daqueles relógios que parecem uma pequena catedral com um cavalinho por cima. Uma peça muito bonita que faz um cagarim doido ao tocar. Toda a gente olha para ali e diz: «É um relógio.» E eu digo: «Não senhora.» Como tenho esta costela surrealista, digo: «Aquilo que ali está na parede é uma panela de sopa.» «Uma panela de sopa?» «Tal e qual.» Porquê? Como era o único bem que havia naquela casa, o sacana do relógio semana-sim-semana-não estava no prego, que ficava na Rua da Esperança. Lá ia o relógio para o prego e nessa noite havia sopa de hortaliça com chouriço de sangue. Era uma festa. O relógio servia para isso.”

Entrevista a Vitor Silva Tavares por Alexandra Lucas Coelho (Público, 2007) in Domingos, Paulo da Costa (coord.), & etc, uma editora no subterrâneo, Lisboa, Livraria Letra livre, 2013, pp. 113-114.

Relógio de parede, que fazia parte do recheio da Confeitaria Barbosa, em Guimarães
Museu de Alberto Sampaio

Sem comentários:

Enviar um comentário