“A
minha avó ia comigo à sopa dos pobres, ali aquele edifício em
frente ao Parlamento, buscar a sopa e o pão escuro que muitas vezes
era a base da alimentação. E há um pormenor completamente
surrealista. Na casa onde ainda hoje vivo só há um objecto do que
era a casa velha. É
um
relógio de cavalinho. Está lá na parede. É um daqueles relógios
que parecem uma pequena catedral com um cavalinho por cima. Uma peça
muito bonita que faz um cagarim doido ao tocar. Toda a gente olha
para ali e diz: «É
um
relógio.» E eu digo: «Não senhora.» Como tenho esta costela
surrealista, digo: «Aquilo que ali está na parede é uma panela de
sopa.» «Uma panela de sopa?» «Tal e qual.» Porquê? Como era o
único bem que havia naquela casa, o sacana do relógio
semana-sim-semana-não estava no prego, que ficava na Rua da
Esperança. Lá ia o relógio para o prego e nessa noite havia sopa
de hortaliça com chouriço de sangue. Era uma festa. O relógio
servia para isso.”
Entrevista a Vitor Silva Tavares por Alexandra Lucas Coelho (Público, 2007) in Domingos, Paulo da Costa (coord.), & etc, uma editora no subterrâneo, Lisboa, Livraria Letra livre, 2013, pp. 113-114.
Relógio de parede, que fazia parte do recheio da Confeitaria Barbosa, em Guimarães
Museu de Alberto Sampaio
Sem comentários:
Enviar um comentário