“Não
costumamos apregoar
que em
Inglaterra não há fome? E
os nossos governantes, nos intervalos das
viagens ao estrangeiro, não fazem belos
discursos sobre o alto nível de vida e bem estar geral
dos
cidadãos do país? Enfim,
a burocracia, em troca dos milhões
que lhe
damos todos os
anos,
decretou oficialmente
abolição
total
dessa horrível
praga
chamada fome.
Mas
não é verdade. Pôs-se,
sim, fim
a
um dos espetáculos
mais miseráveis da
Europa
de
há
trinta
anos:
o
dos
desgraçados que dormiam
no Thames
Embankment.
Já
não é permitido, pelos
regulamentos
da polícia,
que
Lázaro ofenda
os delicados olhos do Rico.
As
formas mais desagradáveis e abjetas
de
miséria foram realmente banidas
das
ruas
principais, e
o Rico
pode agora regozijar-se,
lendo
nos relatórios governamentais, que
Lázaro
deixou
de existir, ou pelo menos, as
suas medonhas
chagas
foram esterilizadas
e
encontra-se finalmente bem
alimentado e
alojado. Se,
no
entanto, descermos até
aos sórdidos
bairros de Spitalfields,
depararemos
com uma
dura realidade, bem diferente da
geralmente
apregoada.
Mas
ali, que importa? Não
há
turistas americanos para se
impressionarem.
Spitalfields
fica
muito
longe de Westminster, e o Rico nunca verá Lázaro.
Portanto,
tudo resultará
bem.
Também nessa tarde fui a Spitalfields. Eram três horas quando tomei lugar na bicha, para conseguir uma senha de entrada por alguns guinéus, num Abrigo Nocturno. Ia disfarçado com fatos andrajosos e até levava uma história convincente para contar, se se deparasse oportunidade para tal. Mas os homens que passavam o dia inteiro a andar, esfomeados, pelas ruas, não eram conversadores. Viam-se, em todos os vãos das portas, farrapos humanos que se abrigavam da chuva, esperando a sua vez. Era óbvio que apenas uma razão levava aquela gente a manter-se desesperadamente, na bicha, às três horas da tarde, mira de conseguir um pedaço de pão, uma tigela de cacau e uma tarimba de madeira: não tinham outro lugar para onde ir. Julgo ter-me comportado com naturalidade: peguei no bocado de pão e no cacau e estendi-me na tarimba de madeira. Passei a noite no Abrigo e, na manhã seguinte saí com os outros homens, obrigados a vagabundear um dia mais, sem parar, pelas desoladoras ruas da cidade. A única diferença entre nós, era que eu regressava à minha respeitável e suburbana casinha para tomar um bom banho, uma refeição decente e dormir algumas horas numa cama autêntica; eles, coitados, teriam de continuar a interminável caminhada, para não serem presos como vagabundos sem casa. Não lhes é permitido contradizer as maravilhosas estatísticas sobre riqueza e bem-estar geral do gabinete de Ministros!”
Também nessa tarde fui a Spitalfields. Eram três horas quando tomei lugar na bicha, para conseguir uma senha de entrada por alguns guinéus, num Abrigo Nocturno. Ia disfarçado com fatos andrajosos e até levava uma história convincente para contar, se se deparasse oportunidade para tal. Mas os homens que passavam o dia inteiro a andar, esfomeados, pelas ruas, não eram conversadores. Viam-se, em todos os vãos das portas, farrapos humanos que se abrigavam da chuva, esperando a sua vez. Era óbvio que apenas uma razão levava aquela gente a manter-se desesperadamente, na bicha, às três horas da tarde, mira de conseguir um pedaço de pão, uma tigela de cacau e uma tarimba de madeira: não tinham outro lugar para onde ir. Julgo ter-me comportado com naturalidade: peguei no bocado de pão e no cacau e estendi-me na tarimba de madeira. Passei a noite no Abrigo e, na manhã seguinte saí com os outros homens, obrigados a vagabundear um dia mais, sem parar, pelas desoladoras ruas da cidade. A única diferença entre nós, era que eu regressava à minha respeitável e suburbana casinha para tomar um bom banho, uma refeição decente e dormir algumas horas numa cama autêntica; eles, coitados, teriam de continuar a interminável caminhada, para não serem presos como vagabundos sem casa. Não lhes é permitido contradizer as maravilhosas estatísticas sobre riqueza e bem-estar geral do gabinete de Ministros!”
Gibbons, John, Não Criei Musgo. Retrato de uma Aldeia Transmontana, Carrazeda de Ansiães, Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, 2004, pp. 102-103.
Shoes
Vincent van Gogh
1886
Museu Van Gogh, Amesterdão
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