11 de janeiro de 2022

Pobreza em Londres

    “Não costumamos apregoar que em Inglaterra não há fome? E os nossos governantes, nos intervalos das viagens ao estrangeiro, não fazem belos discursos sobre o alto nível de vida e bem estar geral dos cidadãos do país? Enfim, a burocracia, em troca dos milhões que lhe damos todos os anos, decretou oficialmente abolição total dessa horrível praga chamada fome. Mas não é verdade. Pôs-se, sim, fim a um dos espetáculos mais miseráveis da Europa de há trinta anos: o dos desgraçados que dormiam no Thames Embankment. Já não é permitido, pelos regulamentos da polícia, que Lázaro ofenda os delicados olhos do Rico. As formas mais desagradáveis e abjetas de miséria foram realmente banidas das ruas principais, e o Rico pode agora regozijar-se, lendo nos relatórios governamentais, que Lázaro deixou de existir, ou pelo menos, as suas medonhas chagas foram esterilizadas e encontra-se finalmente bem alimentado e alojado. Se, no entanto, descermos até aos sórdidos bairros de Spitalfields, depararemos com uma dura realidade, bem diferente da geralmente apregoada. Mas ali, que importa? Não turistas americanos para se impressionarem. Spitalfields fica muito longe de Westminster, e o Rico nunca verá Lázaro. Portanto, tudo resultará bem.
    Também nessa tarde fui a Spitalfields. Eram três horas quando tomei lugar na bicha, para conseguir uma senha de entrada por alguns guinéus, num Abrigo Nocturno. Ia disfarçado com fatos andrajosos e até levava uma história convincente para contar, se se deparasse oportunidade para tal. Mas os homens que passavam o dia inteiro a andar, esfomeados, pelas ruas, não eram conversadores. Viam-se, em todos os vãos das portas, farrapos humanos que se abrigavam da chuva, esperando a sua vez. Era óbvio que apenas uma razão levava aquela gente a manter-se desesperadamente, na bicha, às três horas da tarde, mira de conseguir um pedaço de pão, uma tigela de cacau e uma tarimba de madeira: não tinham outro lugar para onde ir. Julgo ter-me comportado com naturalidade: peguei no bocado de pão e no cacau e estendi-me na tarimba de madeira. Passei a noite no Abrigo e, na manhã seguinte saí com os outros homens, obrigados a vagabundear um dia mais, sem parar, pelas desoladoras ruas da cidade. A única diferença entre nós, era que eu regressava à minha respeitável e suburbana casinha para tomar um bom banho, uma refeição decente e dormir algumas horas numa cama autêntica; eles, coitados, teriam de continuar a interminável caminhada, para não serem presos como vagabundos sem casa. Não lhes é permitido contradizer as maravilhosas estatísticas sobre riqueza e bem-estar geral do gabinete de Ministros!

Gibbons, John, Não Criei Musgo. Retrato de uma Aldeia Transmontana, Carrazeda de Ansiães, Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, 2004, pp. 102-103.


Shoes
Vincent van Gogh
1886
Museu Van Gogh, Amesterdão

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