6 de janeiro de 2022

A vida intelectual e literária em 1963

Na distância do tempo passado, sei como esse ano de mil novecentos sessenta e três foi um tempo de preocupações no conhecimento de muita gente que surgiu no meu caminho e, sem bater à porta de ninguém, continuei a publicar as minhas críticas no suplemento literário do Jornal de Notícias, alargando o sentido das relações sem pressa nem atropelos. A vida intelectual e literária cumpria-se no ambiente dos cafés a horas de entardecer e pela noite dentro quando o antigo Chiado estava quase a desaparecer e ainda sobravam, embora não por mais tempo, a Brasileira, Nacional, Portugal, Gelo, Palladium e Martinho, por onde me cruzava todos os dias com escritores e jornalistas dispostos ao diálogo ou em conversa informal, por entre sonhos e projectos realizados a curto prazo, edições combinadas ou a recomendação deste ou daquele autor que tinha livros na gaveta. E, por entre essa efervescência, sempre as notícias políticas, ecos ou boatos soltos do que chegava no meio de falsos alarmes, no desespero de nada se poder alterar de um dia para o outro.
Olha, meu amigo, era assim que me dividia no convívio pelos cafés da Baixa pombalina, mesmo que esse companheiro se não consolidasse em projectos de realização literária, as conversas decorriam no meio da habitual má-língua, intrigas e piadas em relação a quem se queria atingir directamente porque andava na crista da onda. E por isso recordo que o que mais se discutia ou denegria, nessas tertúlias feitas nos encontros de acaso, se relacionava com as posições neo-realistas e o peso que tal movimento ainda tinha na literatura ou nas páginas culturais, projectos de novas revistas e iniciativas entusiásticas que morriam quase à nascença, mas a influência do neo-realismo, tanto na poesia como na ficção, através dos valores políticos e ideológicos de uma confrontação aberta ou subentendida com a  política de Salazar e o regime ditatorial do Estado Novo, estava por demais presente, apesar dos olhos vigilantes da Censura, em revistas como Vértice, Seara Nova, Gazeta Musical e Jornal de Letras e Artes, o antigo, sim, dirigido por Azevedo Martins, porque a literatura se arvorava como um pretexto para abrir brechas na muralha erguida pelo fascismo a todos os níveis.”

Ferreira, Serafim, Olhar de Editor, Lisboa, Editorial Escritor, 1999, pp. 64-65.



Café A Brasileira do Chiado
João Brito Geraldes
1967

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