“Na
distância do tempo passado, sei como esse ano de mil novecentos
sessenta e três foi um tempo de preocupações no conhecimento de
muita gente que surgiu no meu caminho e, sem bater à porta de
ninguém, continuei a publicar as minhas críticas no suplemento
literário do Jornal
de Notícias,
alargando o sentido das relações sem pressa nem atropelos. A vida
intelectual e literária cumpria-se no ambiente dos cafés a horas de
entardecer e pela noite dentro quando o antigo Chiado estava quase a
desaparecer e ainda sobravam, embora não por mais tempo, a
Brasileira, Nacional, Portugal, Gelo, Palladium e Martinho, por onde
me cruzava todos os dias com escritores e jornalistas dispostos ao
diálogo ou em conversa informal, por entre sonhos e
projectos realizados a curto prazo, edições combinadas ou a
recomendação deste ou daquele autor que tinha livros na gaveta. E,
por entre essa efervescência, sempre as notícias políticas, ecos
ou boatos soltos do que chegava no meio de falsos alarmes, no
desespero de nada se poder alterar de um dia para o outro.
Olha,
meu amigo, era assim que me dividia no convívio pelos cafés da
Baixa pombalina, mesmo que esse companheiro se não consolidasse em
projectos de realização literária, as conversas decorriam no meio
da habitual má-língua, intrigas e piadas em relação a quem se
queria atingir directamente porque andava na crista da onda. E por
isso recordo que o que mais se discutia ou denegria, nessas tertúlias
feitas nos encontros de acaso, se relacionava com as posições
neo-realistas e o peso que tal movimento ainda tinha na literatura ou
nas páginas culturais, projectos de novas revistas e iniciativas
entusiásticas que morriam quase à nascença, mas a influência do
neo-realismo, tanto na poesia como na ficção, através dos valores
políticos e ideológicos de uma confrontação aberta ou
subentendida com a política de Salazar e o regime ditatorial
do Estado Novo, estava por demais presente, apesar dos olhos
vigilantes da Censura, em revistas como Vértice,
Seara
Nova,
Gazeta
Musical e
Jornal
de Letras e Artes,
o antigo, sim, dirigido por Azevedo Martins, porque a literatura se
arvorava como um pretexto para abrir brechas na muralha erguida pelo
fascismo a todos os níveis.”
Ferreira, Serafim, Olhar de Editor, Lisboa, Editorial Escritor, 1999, pp. 64-65.
Café A Brasileira do Chiado
João Brito Geraldes
1967
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