1 de agosto de 2022

Vivemos entre mortos

    Vejo muitos mortos, uma longa fila de mortos conhecidos a avançarem para mim e, à frente, o cadáver da Umbelina, como da última vez que a vi, magra e triste, a fala rouca e sumida, com a morte na garganta, uns olhos assustados, viera da terra a Lisboa e voltava desenganada pelos médicos do hospital, veio cá a casa ver-me, ver o seu menino, talvez para se despedir de mim, morreu daí a dias, naquela altura morria muita gente de tuberculose, hoje é de cancro ou do coração, morre-se de qualquer coisa, tanto faz, vivemos entre mortos, gente que vai morrer e sabe que vai morrer e gente que já morreu, gente morta ou provavelmente morta ou morta daqui a bocado, amanhã, hoje ainda talvez, morte súbita, morte zás! e adeusos mortos caem em todos os lados, caem-nos em cima, apertam-nos, já não metem medo, são tantos, há muitos, há cada vez mais companhia de mortos, tornam-se maçadores, abafam o ar. Aparecem-nos às vezes com um sorriso, fingem bem, mas debaixo dos fatos vem um cheiro que não engana, os olhos são vazios e lúcidos, não querem nem esperam nada, estão mortos por detrás da gravata. Tão mortos como esta Umbelina que só me aparece quando me sinto mais cansado, como se me viesse buscar ou despedir-se de mim, inda uma última vez.”

Pacheco, Luiz, O Teodolito, Setúbal, Estuário, 1990, pp. 48-51.

Fotografia post-mortem "Anjinho". Criança morta, exposta no caixão.
Museu de Lamego

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