"Voltou ao Rossio: entrou num pequeno café, onde a cor suja da parede, o soalho negro, o estuque enxovalhado, comiam a pouca luz dos bicos tristes de gás. (...)
Um pigarro pertinaz, numa mesa ao lado, fê-lo reparar num sujeito que tomava um cabaz: pequeno e grosso, trazia um xaile-manta aos ombros e a face redonda, barbeada, mole, tinha uma cor lívida de pele de galinha; no seu olhar embaciado havia um langor mórbido e grotesco. Sorriu para Artur, dirigindo-se-lhe com uma vozinha fina:
- Má noite!
- Muito má!
O indivíduo imediatamente, arrastou-se pela banqueta de palhinha até junto de Artur, com um movimento derreado dos quadris, os olhos revirados numa ternura chorosa:
- É servidinho de um cabaz?
Artur recusou. Aquela proximidade do velho embaraçava-o: o indivíduo tinha um não-sei-quê de pegajoso na pele, um roliço de perna efeminado que repelia, e nos seus olhos, de cor indecisa e que não deixavam Artur, errava uma luxúria turva, equívoca, flácida.
- Então por que não vai um cabazinho? - disse o homem, mais baixo, chegando-se.
Artur, instintivamente, recuou com nojo. O outro teve um movimentozinho de quadris, tocou-lhe no joelho e muito canalhamente:
- Não tenha medo, menino!
Artur compreendeu, ergueu-se e com os punhos cerrados:
- Seu mariola!
- Então, menino, então! - disse o outro tranquilamente.
Artur berrou pelo criado, atirou uma placa para a mesa e saiu furioso.
O nevoeiro cerrava; e Artur, galgando o Chiado, impelido pela indignação, ia murmurando:
- Canalha de cidade!"
Queirós, Eça de, A Capital, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp. 197-199.
Nota: cabaz - bebida quente composta de café, vinho, açúcar e canela
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[Café Áurea Peninsular na rua dos Sapateiros]
Joshua Benoliel
1909
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