26 de novembro de 2020

Eça de Queirós - LGBTQ+ na obra

    "Voltou ao Rossio: entrou num pequeno café, onde a cor suja da parede, o soalho negro, o estuque enxovalhado, comiam a pouca luz dos bicos tristes de gás. (...)
    Um pigarro pertinaz, numa mesa ao lado, fê-lo reparar num sujeito que tomava um cabaz: pequeno e grosso, trazia um xaile-manta aos ombros e a face redonda, barbeada, mole, tinha uma cor lívida de pele de galinha; no seu olhar embaciado havia um langor mórbido e grotesco. Sorriu para Artur, dirigindo-se-lhe com uma vozinha fina: 
    - Má noite! 
    - Muito má! 
    O indivíduo imediatamente, arrastou-se pela banqueta de palhinha até junto de Artur, com um movimento derreado dos quadris, os olhos revirados numa ternura chorosa: 
    - É servidinho de um cabaz
    Artur recusou. Aquela proximidade do velho embaraçava-o: o indivíduo tinha um não-sei-quê de pegajoso na pele, um roliço de perna efeminado que repelia, e nos seus olhos, de cor indecisa e que não deixavam Artur, errava uma luxúria turva, equívoca, flácida. 
    - Então por que não vai um cabazinho? - disse o homem, mais baixo, chegando-se. 
    Artur, instintivamente, recuou com nojo. O outro teve um movimentozinho de quadris, tocou-lhe no joelho e muito canalhamente: 
    - Não tenha medo, menino! 
    Artur compreendeu, ergueu-se e com os punhos cerrados: 
    - Seu mariola! 
    - Então, menino, então! - disse o outro tranquilamente.
    Artur berrou pelo criado, atirou uma placa para a mesa e saiu furioso.
    O nevoeiro cerrava; e Artur, galgando o Chiado, impelido pela indignação, ia murmurando: 
    - Canalha de cidade!"

Queirós, Eça de, A Capital, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp. 197-199.

Nota: cabaz - bebida quente composta de café, vinho, açúcar e canela

Daqui

[Café Áurea Peninsular na rua dos Sapateiros]
Joshua Benoliel
1909

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